Oi Adriana.

Em algum lugar, no futuro, você tem 71 anos.

Hoje pensei em você aí, tão indecifrável. Em poucos meses, o mundo se transformou nesse 2020. Quem dirá em 2040? Impossível imaginar como você estará, se algumas partes de seu corpo serão biônicas, se terá vivido um grande amor, escrito um livro, se viverá com suas irmãs, se mora no meio do sertão nordestino e alfabetiza os pobres, se tem uma escola popular onde ensina a ler e escrever pelo preço que podem pagar.

Mas pensei em você por outra coisa. É que hoje, do nada, recebi uma mensagem de uma pessoa que usou um texto seu, meu, nosso… para contar uma história. Narrado na voz dela, as palavras nem pareciam que eram suas. Mas eram. Foi a segunda vez em pouco tempo que alguém referencia um texto seu, meu, nosso… e isso mexeu alguma coisa em mim.

Grávida de mim

Sabe, com 51 anos, parece que um cansaço de fazer certas coisas toma conta de mim. Até a escrita tem se insurgido. Se oculta pelos cantos, a bandida! Sinto falta dela, por isso continuo procurando, procurando… uma hora a gente se encontra. Tem dias em que sinto que estou parindo uma nova você. Estranho isso, né? Eu, que nunca pari nada além de palavras, de repente me vejo grávida de mim. Do que eu serei em 2040, 20 anos depois do Corona.

Tenho lido muito. Livros que não leria normalmente. Tenho prestado atenção ao que me chega, seja em conversas, textos, filmes, sonhos. Até memes (que acho imbecis e imbecilizantes) chegam às vezes e me chacoalham de alguma maneira. Tento achar um caminho entre ser simples, ser entendida e não aceitar a banalização do mundo. Será que não existe outro caminho, além desse movimento que nos torna mais emburrecidos e emburrecedores?

Sempre que ouço as palavras “sair da zona de conforto”, esse ser que estou gerando se mexe. Chuta minha alma. Estica as mãos. Ainda sem falar, me diz: vamos encontrar esse caminho, que é apenas seu, de mais ninguém. Incomoda com seus movimentos violentos, querendo sair de mim, rasgar as resistências da alma.

Avalanche de coragem

Daí, dos seus 71 anos, você deve se lembrar bem o que aconteceu quando esse ser me invadiu. Foi uma avalanche de coragem. Escrever. Ensinar a escrever. Voltar para casa. Construir. Descobrir. Experimentar. Errar uma, duas, muitas vezes. Cair. Levantar. Aprender a andar com o equilíbrio de um bebê e depois com os pés firmes de um maratonista. Porque o tempo passou rápido. Em 20 anos, você viveu uma outra vida. Melhor? Pior? Não tenho ideia. Não estou nem quero estar aí espiando.

Foi uma gestação demorada. Porque de mim, vieram várias Adrianas. A que saiu de casa aos 17 anos e enfrentou a faculdade  e o começo da vida adulta com uma sucessão de acertos e erros. Que fez tanta besteiras mas saiu inteira. Arranhada, machucada, mas inteira. Depois veio a que teve uma carreira linda. Construiu uma reputação sólida, teve bons empregos, uma vida financeira equilibrada. Escolheu homens errados e com ele viveu erradas e únicas histórias de amor. Com direito a cenas de cinema e mágoas de despedaçar corações.

Aí você pariu sua pior versão. A que por algum motivo começou a ter medo. Estagnou, ficou parada, congelou no tempo, no espaço, ficou como pêndulo. Para lá, para cá. Sabia que podia mais, ir mais longe, pendular em todas as direções. Mas alguma força te paralisou naquele tempo. Amarrou seu pé como argola de prender elefante em circo.

Olhar para dentro

Consciência. Olhos abertos. Olhar para dentro. E agora, 2020, percebo que estou grávida de uma nova versão de mim. Inquieta. Barulhenta. Cheia de possibilidades que atiram em todas as direções. Essa outra pessoa ainda não está pronta para sair. Talvez seja você, que me lê em 2040. Talvez seja alguém que já nasceu duas ou três vezes. Diferente.

Cabelos brancos. Corpo saudável. Alma em equilíbrio. Sozinha. Assustada. Valente. Essa é a barriga que te gera. O útero prenhe de um novo rebento. Sem hora para chegar, porque não tem hora desse outro eu que habita por aqui ir embora. Por ora, aliso o ventre. Espero. Daqui a 20 anos te encontro. Não tenho muito a ensinar, exceto a ter paciência que esse tempo de gestação se faz necessário.

Esse texto foi escrito após uma tarefa da psicóloga Renata Rezende, em encontros com Patrícia Magnino, Cláudia Guerra, Ana Paula de Almeida e Viviane Rezende. Posto na semana do meu aniversário de 52 anos. O parto já aconteceu. Foi natural e bonito.