Nessa vida, posso dizer que amei.
Não sei se fui amada, mas amei. Poucos homens, é verdade. Relações singulares, em que abri uma pequena aresta na armadura que criei para me proteger de dores que trago em mim. Mas existe um amor, um só, de quem sinto imensa falta. Nunca foi uma relação romântica, mas sempre foi amor. Desde o encontro, nos escritórios de uma empresa qualquer, até a despedida, no imenso jardim de uma das casas onde morei. Naquele dia, acredito que morri em vida para ele. Por motivos que talvez eu não venha a saber.
Durante duas décadas, foi um dos meus melhores amigos. Mudou-se comigo pelas casas onde morei. Ajudou com quadros, arranjos, móveis. Ensinou-me a dirigir meu carro automático, rodou concessionárias comigo em busca do melhor modelo. Estava ao meu lado quando passei por dores de outros amores. E brincávamos que nossa relação era mais forte que tantas outras. Hoje eu sei que não. Almoçava comigo às vezes. Saíamos para tomar cerveja ou sorvete. Me cuidava e era cuidado por mim. Tentei arrumar namoradas para ele, mas minha mão não era boa.
Mesmo assim, um dia percebi que havia morrido em vida.
Luto ao avesso
Quando a gente morre em vida para alguém, a gente vive um luto ao avesso. Um luto de saber que não existe mais no coração do outro. Que tanta coisa bonita foi enterrada e ficará viva apenas em seu coração. Quando a gente morre em vida para alguém, sente uma solidão muito grande. Porque aquele que era seu porto seguro, deixa claro que nunca mais estará ali. Verdades não são ditas com palavras, mas com silêncios, que se traduzem no seu coração. No dicionário confuso dos sentimentos, silêncios se transformam em desprezo. A arma que mata a gente em vida.
Um dia, me contaram que ele estava vivendo um desafio em sua vida pessoal. Sabendo-me morta, ainda assim, quis estar por perto. Talvez pela última vez. E fui. Não consegui ainda deixar morrer em mim esse amor de amigo, que chorou com o milagre da cura, com cada passo bonito da recuperação, do caminho que ele trilhou sem ter minha mão para se apoiar. Talvez tenha recebido, de longe, os sinais desse amor que insiste em sobreviver na UTI das relações adoentadas.
Saber-me morta em vida é incomum. A princípio, custei a aceitar. Insisti, fiz de conta que nada havia acontecido, me fiz presente em aniversários, dias dos pais e natais. Até que finalmente veio a aceitação. Em meu luto às avessas, luto da morte de mim no coração alheio, veio com o tempo a aceitação. Nada podemos fazer quando somos afastados da vida de outra pessoa. Meu amor, esse nunca morreu. Mas hoje entendo. Não hei de me demorar onde não há morada.
Amores diversos
O amor tem dessas coisas. Ele existe e tem tantas formas. Nessa história, da qual tanto sinto saudade, era amor de amigo. Para mim, ainda é. Tanto que às vezes ele me volta em sonhos, onde conversamos sobre coisas que não sei, porque meus sonhos se apagam ao acordar. Quando a gente morre em vida, no coração de outro alguém, ocorre um luto às avessas, onde acenamos um adeus que preferíamos não dar.
Hoje me deu saudades desse amor. Ele era meu anjo da guarda. Eu era o anjo dele. Bati minhas asas para me proteger. Eu não estive ao seu lado quando ele mais precisou. Ele não esteve ao meu lado quando passei por momentos de dor. E assim se desfaz um amor. No silêncio das coisas não ditas. Nos enganos que resultam em beleza, dor e afastamento. Tive vontade de segurar sua mão e dizer que tudo, tudo vai ficar bem. Que sigo rezando e uso minhas asas para chegar mais perto do céu e tentar falar direto com Deus. Por vezes, esqueço-me do meu lugar, de quem morreu em vida. Enlutada, guardo esse sentimento na gaveta de papel de seda das minhas histórias de amor.
Sob a copa desse ipê, chorei um dia essa morte de mim. Plantei a tristeza na raiz, levantei e segui meu caminho. Quando a gente morre em vida, escolhe seguir vivendo. Seguir amando.
Que texto lindo, Adriana! Belimbeleza!