De vez em quando me perguntam de onde vem a poesia. De onde sai a capacidade de fotografar uma cena do cotidiano para em seguida revelá-la em papel-palavra.
Vou contar um pequeno segredo, cuja história se esconde atrás dessa porta, de uma casa cheia de histórias. Nela cresceu meu pai, Rolando Zenon de Souza. A semente da minha poesia. A fonte da minha criatividade. Metade que vive em mim.
Por trás dessa porta existe um velho casarão, talvez centenário. Ali, viveram meus avós Cincinato e Deolinda. Vó Fia. Viveram tios, tias e primas. Ali viveu meu pai. Ali pai foi velado, em uma longa noite, quando eu tinha apenas 13 anos. Ali chorei por um tempo que não sei. Ali vi seu rosto pela última vez.
Foi um impulso, desses que a gente não planeja. Hoje eu estava em Franca e resolvi fazer uma visita às lembranças de meu velho pai, primeiro poeta.
No cemitério, levei flores ao túmulo árido, onde restam apenas poeira dos ossos do homem enorme que ele foi. Apenas a lembrança distante de uma voz que já nem lembro mais. Nem seu rosto. Nem seus olhos.
Na velha casa, deixei-me ficar por algum tempo. Tentando enxergar pelas brechas das madeiras as lembranças que se apagaram com o tempo.
A porta trancada, ainda trazia a mesma cordinha que a gente puxava para soltar a tramela. Qualquer hora do dia ou da noite, o casarão estava sempre aberto. As janelas enormes eram fascinantes para mim. Hoje cerradas, ocultam não sei o que. Ocultam histórias. Um pedaço da minha, talvez. A do meu pai, em documentos que podem ter sobrevivido aos restos do que a casa já foi.
Nos fundos, pelo velho portão, olhei o quintal. Havia vida ali, embora não se possa ver muito. Lembro-me da escada de cimento, que parecia enorme e ligava a cozinha ao terreiro e ao porão. Existia um galinheiro. Não lembro mais.
Por trás da porta da velha casa há lembranças boas e más. Alegres e tristes. Há fantasmas de muitas gerações. Talvez tenha sido ali que meu pai escreveu seus primeiros poemas. Talvez tenha chorado de dor. Talvez tenha vivido momentos bons. Morreram com ele.
Aproveitei a viagem para agradecer. Pela vida. Pelos dons. Pelo presente palavra, que seu Rolando me deu sem saber. Faz bem visitar nossos mortos, mesmo que saibamos que nada mais resta. Túmulos são morada sem histórias.
Há muito, muito o que se desvendar por trás das velhas portas. Da vida. Das casas. Da alma. De mim.
Publicado originalmente no Facebook, em outubro de 2019