Salvar o gelo
Encontrei meu sobrinho de cinco anos querendo entrar na geladeira. Perguntei o que fazia e ele me respondeu que estava salvando o gelo. Pediu que eu abrisse o congelador e me mostrou um copinho com alguns pedaços de gelo, que tirou de uma tina onde a gente tinha colocado as bebidas da festa para ficarem geladas. “Ainda tem gelo, tia Dri. A gente tem que salvar o gelo.”
Bem, não tem como resistir a um pedido de socorro desses. Fomos ele, Manuela e eu salvar o gelo. Pegamos um pote maior e salvamos todos os pedaços de gelo que sobreviviam na tina. E colocamos tudo no congelador.
Hoje cedo, fotografei o gelo salvo e mandei para ele, que me respondeu com um bilhete via WhatsApp. “Tia Dri, eu amo salvar o gelo. Sempre quis salvar o gelo, mas nunca dava tempo. Escrito: Joaquim. Amém”.
Não derreteu
Pouco antes de pegar estrada, peguei o gelo para manter refrigerado um pedaço de bolo que trouxe para Uberlândia. Para minha supresa, apesar dos 230 km de estrada, uma boa parte do gelo chegou aqui, são e salvo. Fiquei pensando no quanto meu pequeno sobrinho me ensinou sobre a importância de preservar o que merece ser preservado. Não sei o que se passou pela cabecinha dele ao querer salvar o gelo. Mas sei que aquele pedaço salvo está agora na minha geladeira.
Hoje à noite, na liturgia da missa, ouvimos muito sobre o perdão e a capacidade humana de deixar para lá sentimentos ruins quando eles se instauram. Conheço pessoas que, por pequenas besteiras, rompem definitivamente com amigos, parentes, amores. Passam a odiar aqueles a quem um dia amaram, ou pelo menos sentiram algum carinho.
Gente não é descartável
Conheço gente que simplesmente deleta pessoas de suas vidas, como se elas fossem absolutamente descartáveis. Muitas vezes isso acontece por causa de um mal entendido, uma palavra dita na hora errada, divergências políticas, visões de mundo diferentes. E aí vem meu sobrinho, de cinco anos, com seu singelo gesto de salvar o gelo que iria virar água e ser jogado fora.
Por algum motivo, ele achou que valia a pena deixar que o gelo “vivesse” por mais tempo. Assim como certas relações em nossas vidas merecem viver mais tempo, por mais que derretam.Amizades e amores derretem também, se não houver em nossos corações a inocência de salvá-los. Mesmo que seja para colocar na geladeira, deixar para lá. Salvar o gelo pode ser o simples gesto de uma criança. Mas me deu uma pequena lição.
Publicado originalmente no Facebook em 17 de setembro de 2019. Dedicado ao Joaquim Nicácio, meu sobrinho querido.