Todos os dias, antes de dormir, leio um pouco. Na cabeceira, agora, dorme ao meu lado “Ofício de Escrever”, de Frei Betto. Ontem, segredou-me entre lençóis os versos de Adélia Prado: “De vez em quando, Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”.
Me encontro nesses versos. Foge-me a poesia diante das palavras duras do negro sufocado, em uma execução pública: não posso respirar, não posso respirar.
Foge-me a poesia quando um pai enterra seu filho negro, alvejado por tiros da polícia, dentro de sua casa. O rosto daquele pai grita também: não posso respirar, tamanha a dor.
Foge-me a poesia quanto acompanho as manifestações preconceituosas nas redes sociais, que reforçam o racismo, criticam discussões sobre gênero, preferências sexuais, classe social, peso, estilo de vida, posição política.
Sai em disparada a poesia, correndo como louca de minhas mãos, a cada vez que se depara com as declarações e atitudes incongruentes do homem que lamentavelmente ocupa a presidência da república do Brasil.
Escapa-me a poesia diante de 30 mil mortos pela Covid-19. Cada morte, morre também em mim a esperança do olhar poético. A poesia veste luto e se distancia de mim. Talvez para levar acalanto às milhares de famílias que choram seus mortos.
Nem mesmo a resistência dos americanos, dos brasileiros, dos que elevam suas vozes em defesa da liberdade, contra o racismo, o sexismo, os extremismos (sejam de direita ou esquerda)… nem assim a poesia se sensibiliza e resolve voltar.
Tento argumentar com ela. Olha a beleza, dona poesia. Vidas negras importam. Vidas gays. Vidas trans. Vidas gordas. Vidas pobres. Vidas faveladas. Vidas trabalhadoras. Vidas empreendedoras. Vidas presas. Vidas políticas. Vidas policiais. Vidas feias. Vidas de Instagram. Vidas religiosos. Vidas castas. Vidas pervertidas. Vidas velhas. Vidas jovens. Vidas femininas. Vidas masculinas. Vidas animais. Vidas de plantas.
Vidas importam.
Não adianta tentar vencer a poesia pelo cansaço, insistindo para que ela volte. Como Adélia Prado, olho a pedra, vejo pedra mesmo. Escolho deixá-la quieta em seu lugar. Nunca é tempo de atirar pedras.
Que tenhamos sabedoria para entender que não estamos em uma guerra onde os lados precisam atirar pedras uns nos outros. Quem sabe aprendemos a utilizá-las para construir pontes. Pode ir, poesia. Um dia a gente se encontra.
Publicado originalmente no Facebook, em junho de 2020.