As duas vidas de um corpo
Quem escreve aqui é um corpo que quer compartilhar sua história. Um corpo com 54 anos de idade. E que já teve duas jornadas de vida, igualmente divididas.
Primeira metade
Na primeira metade, fui corpo bebê, criança, adolescente, mulher. Carreguei muito mais peso do que era capaz de aguentar. Meus ossos se quebravam a qualquer tombo. Eu tinha uma desesperada fome de comida, bebida, descanso. A alma que mora em mim era faminta de afeto. Assim, famélicos, caminhamos juntos, corpo e alma. Por longos anos.
Durante 27 anos, a comida, a bebida, a falta de atividade física fizeram de mim um corpo grande, mas frágil. Um corpo frágil, mas protegido por uma grossa armadura. Ela me isolou dos medos. Mesmo sendo um corpo grande, precisei dela por longos anos.
Segunda metade
Aí veio a segunda metade, outros 27 anos. Sou corpo mulher. Forte e corajoso. Saudável. Aos poucos, bem devagar, a armadura foi ficando larga. Foi possível tirar braços, pernas, cabeça, tronco. Todo o corpo ficou exposto. Frágil, forte, sem aquele desespero por preencher lacunas. Estava tudo completo. Já não era necessário devorar.
Hoje, com 54 anos de vida, sou um corpo possível depois dos tantos estragos do tempo. Sair da armadura as vezes machuca, deixa cicatrizes. Dói. Mas é caminho sem volta.
Sou corpo forte. Que se expõe sem vergonha. Não preciso mais de proteção. Nem de me esconder atrás de um alimento que não nutre. Apenas tapa buracos abertos em algum lugar no tempo.
A gente não quer só comida
Demorei muito tempo para entender que, como corpo, eu não precisava suprir os buracos da alma. Os vazios deixados pelas dores que a menina herdou, pelos medos que a adolescente teve e pelas fugas que a adulta empreendeu.
Eu dava comida demais, bebida demais, desculpas demais para alimentar os buracos das bocas famintas, sempre abertas.
Sem a armadura, passei a me alimentar de outros afetos. E experimentei o quanto eram bons e nutriam outros pedaços de um corpo, cada vez mais integrado à mente e ao coração. Uma mudança completa na relação com o comer, o beber, o gozar a vida e suas experiências. Essa mudança ainda está em curso.
Não metade, mas inteira
Esse corpo que se pendura em um balanço, sou eu. Esse corpo que caminha sozinho, sou eu. Esse corpo que abriga uma alma sensível, sou eu. Sou feito de muitas histórias. Vivi duas vidas. Talvez tenha a sorte de mais duas ou três.
Essa é uma história que esse corpo, muito pesado até os 27 anos, gosta de contar. Depois da decisão de me transformar, são outros 27.
Não é estética. Não é moda. Não é beleza.
É perceber que a armadura pode ser destruída. Para que tudo seja mais leve. Inclusive eu, o corpo que aqui escreve. Ele abriga a alma, que aqui se expõe. Caminham juntos, um cuidando do outro. Sem precisar de proteção.
Um resumo disso tudo
Em 2012, a convite da minha nutricionista da época, Reila Satel, dei uma entrevista onde contei detalhes do meu processo de emagrecimento. Foi meu caminho, tive condições de trilhar. Sei que nem todos e todas têm as mesmas oportunidades. Mas resolvi compartilhar minhas duas vidas. Se ajudar a inspirar pessoas em seu processo de mudança, já valeu a pena.
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