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Algoritmos não mentem jamais

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Algoritmos não mentem jamais

Havia uma brecha quase invisível entre o mundo de dentro e o de fora. Resolveu passar por ela. Dobrou braços, encolheu pernas, prendeu a respiração, murchou a barriga. Foi um tempo muito comprido até passar o último fio de cabelo. Mas finalmente, entrou. Ou saiu. Era meio impreciso definir o que era dentro ou fora.

Uma coisa engraçada. Desse lugar, a brecha parecia ser maior. Era possível ver, ouvir, sentir os cheiros de tudo que ficou do outro lado. Tentáculos invisíveis faziam esforços para atrair. Enquanto isso, do lado de cá, caminhava lentamente. Sentia fitas coloridas se enrolando em seus tornozelos, calmamente. Eram suaves e bonitas. Convidavam.

A vida daquele lado não era ao contrário. Era apenas vida. Sentou-se. Acima, o céu azul. Tempo de contemplar. Pela brecha, tentáculos ofereciam padrões de céu mais consumidos. Algoritmos não mentem jamais. Aprendeu aos poucos a driblá-los. O céu estava tão bonito e era bom estar ali. Sem propósito algum.

Havia momentos em que abria um livro. Preguiçosamente, mergulhava nas histórias dos personagens que ora se amavam, ora brigavam entre si. Faziam coisas boas e ruins. Lia lenta e atenciosamente.

Notou os tentáculos. Sopravam estatísticas sobre quantos livros é possível ler em um ano desde que se adote o método. Era caro o método. Era indiferente para o método sua paixão pela heroína ou sua torcida pelo vilão. Ao método, importava a métrica. À mente, naquele instante, importava a história, a fantasia, as palavras. Voltava páginas que considerava bonitas. Enfurecia-se o método.

Mais gente passava

Um dia, entre passos distraídos, deu-se conta de que mais pessoas passaram pela brecha. Parecia difícil passar, agora que já estava. Não sabia ao certo quanto tempo levou até chegarem novas gentes.

Sentaram-se em torno de uma mesa para conversar. Mulheres, homens e crianças. Falavam de histórias, livros, brincadeiras, situações engraçadas, belezas e feiuras. Jogavam brinquedos simples, com peças que criavam aventuras.

Perceberam os tentáculos. Um ensinava o outro a ignorar. Eram tentadoras as cores, os convites, as delícias. Alguém se esforçava bastante. Era fundamental que aquelas pessoas voltassem para o outro lado. Preferiram ficar. Optaram por esperar. Ouviu-se um ruminar ruidoso. Que importância teria?

Assim passaram os dias. Uma vida normal. De trabalho, alimentação, estudo, descanso, movimento de corpo, sexo, vida, morte, tempo que passa. De um dos lados da brecha, era bonito olhar nos olhos, sorrir, dançar e brincar junto, perceber o corpo, a mente. Do outro lado, os tentáculos-convite na autêntica tentativa da atração. Adbução.

Foi construindo seu caminho, seu jeito de ser no mundo, sua essência. Aproximou-se de outras tantas gentes que se dobraram ao meio para entrar pela brecha. Mantinha alguma proximidade dos que escolheram ficar do lado de lá. Os braços invisíveis continuavam em seu entorno, enlaçando para um balé sensual e sem sentido. Talvez um dia, voltar pode ser boa ideia.

Não agora.

Havia um lado de cá. Havia um lado de lá. Havia a brecha. Havia o corpo. As escolhas. Os caminhos. Ouvir suas próprias vontades, sua própria voz, seus anseios. Fechar os ouvidos para outras vozes, tentaculares, que puxavam para a dimensão onde tudo sempre foi assim. Contemplar a tela, não o céu. Conversar com a máquina, não com a criança. Brincar com a realidade imaginada. Não com o cachorro que abana o rabo e chama para passear.

Caminhava lado a lado, muito perto daquela brecha que separava mundos. Ou que os unia. O que vinha do lado em que estava agora ganhava maior volume do que o que vinha do outro lado.

A voz de dentro pedia calma, tempo, acolhimento, aceitação.

O barulho de fora não pedia, mandava. Trabalhe enquanto os outros dormem. Seja o melhor, não importa em quem tenha que pisar. Ganhe dinheiro. Tenha bens. Compre, compre, compre. Use roupas iguais. Mantenha os cabelos da mesma cor. More do mesmo jeito. Foguete não dá ré. Adote essa fórmula. Acredite nessa mentira. Espalhe essa mentira. Viva essa mentira.

Paradoxos

O corpo, que encabulado coube na brecha logo no início da jornada, sabia que não poderia cimentar aquela porta. Mas sabia que passar novamente por ela não fazia parte dos planos, pelo menos não agora.

Ao dobrar-se, fazer possível avançar pela porta-tempo, haveria uma escolha de viver outra vida. Igual, mas diferente. Solitária, mas coletiva. Completa, mas faltando parte. Escura, mas com luz disponível para evitar as quedas e os buracos do caminho.

Foi ficando. As vezes doía. Outras alegrava. As vezes era plena. Outras era falta. Eram quereres desiguais, ali estavam para serem explorados. Sem pressa. Sem tempo. Sem voz. Só com vontade de transitar de um lado a outro, sem perder-se de si.